O Dia
Eu, bichinha, já era lírico, já buscava o discurso artístico articulado pelo brinquedo conceitualRio - Ah, o presente de Natal! Quando eu era bem pequeno, pedíamos a Papai Noel, sempre orientados quanto ao preço, pois não podia ser caro como uma bicicleta. Nos contentávamos com naves espaciais que rodavam e piscavam, feitas de lata que logo abríamos e desmontávamos.
Curiosos, queríamos ver como funcionavam por dentro, e quem disse que depois sabíamos fechar? E quando crescemos e descobrimos que Papai Noel era nosso pai, recebíamos um dinheirinho e íamos até o comércio central para que cada um comprasse o que escolhera. Pois eu comprei o Zé Fruteiro, horroroso boneco negro que, depois que dávamos corda, saía empurrando seu carrinho de frutas e balançando as perninhas. Todos acharam esquisitíssima a escolha, porque normal era bola, futebol de botão, armas de plástico, super-heróis.
Mas eu, bichinha, já era lírico, já buscava o discurso artístico articulado pelo brinquedo conceitual. E qual não foi meu susto ao ver, no Museu Afro do Brasil, no Parque do Ibirapuera, meses atrás, uma exposição que mostrava objetos do cotidiano, que reforçam o estereótipo do lugar do negro na sociedade. Quem estava na vitrine, 40 anos depois? O Zé Fruteiro. E fui acometido de uma tristeza sem fim ao rever meu boneco feio, que vivia solitário a empurrar suas frutas. E eu que empurrava meus sonhos.
Depois, tive que comprar um presente normal: um carro vermelho, destes de Fórmula 1, que, impulsionado por uma fita de plástico preto que eu tinha que puxar com toda a força, as rodas disparavam e, ao ser colocado no chão, saía desembestado batendo em tudo, violento, para delírio dos outros meninos. E eu a olhar aquilo, desolado, sem achar a menor graça na eterna necessidade de puxar a fita e colocar o carro no chão para correr.
Aliás, como Felix menino explica para papi poderoso Cesar que não quer ganhar o carrinho? Se pedir o estojo de maquiagem igual à da filha do vizinho, vai levar sopapos? Acho que sim, né? E a boneca com o mais diáfano dos vestidos, aquela que faz o coração disparar, é possível para o menino que ganhará muito dinheiro no futuro de sua vida com roupas, escolher algo de moda como presente da mais tenra infância? Difícil.
E ficava este descompasso entre o querer e o poder pedir, hiato que foi viajando rumo à vida adulta, quando poderia escolher e comprar tudo o que Papai Noel não permitiu. A construção social do presentinho que vem da neve, puxado por renas e caídos em chaminés (como eu sofria por não ter uma casa com lareira, que esquentasse ainda mais o infernal calor equatorial de minha Belém de 1960, incinerando os sonhos distantes), era um sofrimento de esperar o que não agradaria, porque era mentira.